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Crónicas dos Clássicos - Marco Ireneu Pestana

Marco Ireneu Pestana


A audaz Hellé-Nice: Do cabaret às pistas


Existirá algo mais inflamável que uma elegante e charmosa mulher, com um potente Alfa Romeo? Destemida, a competir com os pilotos Tazio Nuvolari e Louis Chiron ou Jean-Pierre Wimille, considerados os "ases do volante" nos excitantes anos 30? Pode até existir, mas não deixa de ser um cocktail, deliciosamente explosivo!

Várias e talentosas mulheres piloto, adocicaram a história da marca do Quadrifoglio verde. Mas a Mariette Helene Delangle, imortalizada "Hellé-Nice" será, na minha opinião, uma das mais cativantes mulheres piloto, dessa época de ouro. Com multidões de admiradores nas pistas, onde espalhou o seu perfume inebriante.

Esta modelo francesa ganha fama e fortuna, entre 1916 e 1926 como bailarina nos movimentados cabaret parisienses. Magistral estratega tanto no jogo da sedução como no ski – onde tem um acidente – que a leva à vertigem da velocidade automóvel. Entre o odor a gasolina e o glamour do fox-trot na luxúria dos seus amores, conhece Ettore e Jean Bugatti. Daí, nasce ao volante de um Bugatti T35C uma reconhecida sportswomen recordista na velocidade na Europa e no continente americano. Cresce com o seu Alfa Romeo 8C 2300 Monza - pintado em dois tons de azzuro com o qual participa nos Grand Prix - e que a torna numa heroína mundial, na afirmação feminina.

Em 1936, volta ao palco no GP do Rio de Janeiro - "Circuito da Gávea"- alcunhado por "trampolim do diabo" - lado a lado com os pilotos Carlo Pintacuda e Atílio Marinoni – da Scuderia Ferrari e os lusos Henrique Lehrfeld e Almeida Araújo, ambos em Bugatti. Meses depois, no I Grande Prémio da Cidade de São Paulo, ocorre o maior acidente da história do automobilismo do Brasil. Ela é a infeliz protagonista. O seu Alfa Romeo catapulta-a à velocidade de 160 km/h, ao embater num fardo de palha solto – existindo testemunhos com o volante local Manuel de Teffé com o causador, impedindo a ultrapassagem numa manobra em curva - Ela é salva ao cair, amparada, sobre um soldado que se torna num dos 6 mortos e 35 feridos entre os espectadores – O despoletar da construção do autódromo de Interlagos.

O Alfa Romeo destruído é reconstruído pelo piloto brasileiro Benedicto Lopes, com o auxílio de entusiastas e da própria Hellé-Nice. Que envia peças originais desde a Europa. Em 1937, convidado por pilotos portugueses, participa com o mesmo no "VI Grande Prémio internacional de Vila Real" e no "III Prémio do Estoril". Pisando solo português, o veterano e marcante Alfa Romeo da Rainha das Pistas dos anos 30.

Hellé-Nice, em 1949 quando tenta correr no "Rali de Monte Carlo" é acusada – sem prova desse facto - de colaboradora da Gestapo, na França ocupada durante a II Guerra, pelo piloto e rival Louis Chiron. Cai no desprezo e completo esquecimento de todos. Morre em 1984, aos 84 anos, na miséria. Em 2010, é constituída por mulheres norte-americanas, amantes do desporto automóvel a "Fundação Hellé-Nice".

Finalmente Hellé-Nice, ultrapassa a sua justa bandeira xadrez!

novembro 2020

Miss Zita Garton

Toca o telefone na Agência de Transportes Aéreos da Madeira, a filial da empresa britânica Aquila Airways - no nº 33 da Rua da Alfândega, Funchal – Alguém do outro lado da linha informa, que Sir Winston Churchill interrompeu as suas férias, no Hotel Reid's Palace, de forma inesperada, pelas notícias recebidas de Londres, sobre as eleições para o novo primeiro-ministro britânico. Tinha que partir da Madeira e, da forma mais célere! Um elegante Hidroavião Short Sunderland S45 Solent da Aquila Airways, com uma enorme Union Jack estampada na cauda, amarou na baía da Cidade do Funchal, dominando as vagas daquele mar do dia 12 de janeiro de 1950. Cecil Garton era um dos seus pilotos, membro de uma família madeirense com origem em Leopold Garton, um cidadão Inglês - que no passado colaborou, no ligar a Madeira ao mundo, com os cabos submarinos no Atlântico - colocados a partir de 1873 – pela Eastern Telegraph Company. Cria raízes, apaixonado pela Ilha e pela madeirense Carolina Passos de Freitas.

Como em tantas ocasiões, a menina ruiva Zita Garton, cúmplice com o seu irmão Mark no banco traseiro do Nash descapotável paterno - estacionado sobre o molhe do porto funchalense - assistia entusiasmada, à aproximação e amaragem dos prateados Flying Boats, da empresa fundada pelo veterano Comandante da Royal Air Force : Barry T. Aikman - colega de armas na R.A.F. do seu tio Cecil, no decorrer da II Guerra Mundial e à qual, a sua família permitiu surgir em 1949, da primeira ligação aérea regular de passageiros e carga, entre a cidade inglesa de Southampton e o Funchal – com escala em Cabo Ruivo, em Lisboa. Semelhante cenário àquele da partida, no hidroavião do grande estadista da terra de Sua Majestade - que pintou as suas aguarelas na Vila de Câmara de Lobos sob o perfume do seu inseparável charuto e que tanto a impressionou, pelo seu carácter determinado.

A cativante Miss Zita Garton nasceu no dia 8 de agosto de 1940, no Funchal. Filha de Maria Amélia e Roland Garton, que entre outras atividades, estava ligado à gestão do Hotel Miramar, onde durante vários anos, realizaram as cerimónias de entrega de prémios, das provas organizadas pelo "Clube 100 à Hora". Influenciada pela participação do seu pai nas "Volta à Ilha" desde a "I Volta" em 1959, onde concorreu com o número um de porta no seu Fraser-Nash. Partilhava com ele a paixão pelos automóveis, ao ponto de um dia, surgir em casa com um carro comprado para surpresa do seu Pai...

Aventureira e audaz ao volante, com gosto pela velocidade e a dança do conta-rotações. Decide com 23 anos - em 1963, participar em provas com um MG B. Incluindo o VIII Rallye Isla de Gran Canaria – II Internacional, nos dias 16 e 17 de fevereiro, integrada na comitiva de 13 madeirenses e acompanhada pela sua frequente cronometrista: Margarida Mendes Pereira. Azaradas, terminam a prova com uma violenta saída de estrada – Não sendo ela capitão-aviador como o seu tio Cecil dos hidroaviões - o MG voa por 18 metros!! - A palavra medo é desconhecida desta equipa feminina! Prova inequívoca, são as palavras em pleno voo da Guida: - "Não te preocupes Zita, isto é baixinho! "Saem ensanguentadas, mas ilesas de algo grave! Ganha destaque nos jornais espanhóis:" Una preciosa pelirroja que cautivó por su simpatía..."! Meses mais tarde, recuperadas, participam na "V Volta à Ilha".

A elegante Zita Garton, em 1965, compra um atraente Alfa Romeo Giulietta Spider, azul celeste. O "HH-60-23", exposto no agente "Fernando Ornelas Cunha". Participa com espírito determinado - vencendo o "prémio Senhoras" - na "VII Volta à Ilha" (#11). Passados 50 anos - faltavam dois dias para o seu 75º aniversário (2015) - numa agradável tarde de agosto confidencia-me: - "Tenho saudades desse tempo. Eu conduzia descalça, para sentir os pedais e efetuando as mudanças de caixa com ouvido apurado, a cada curva ou subida. Uma emoção". Surpreendida ficou, quando referi que seria a única mulher a correr com uma Giulietta Spider, na época, em todo o país. Ao que rematou: "nós madeirenses sempre fomos pioneiros em muita coisa, não me admira, portanto, que fosse a única!". Parafraseava pelo olhar, o estadista que a eterna Miss Garton admira: "Não há delito maior, do que a audácia de se destacar". E, imagino que Sir Winston Churchill teria pronta resposta: – "Very good indeed, Miss Zita Garton!".

outubro 2020

O Fiat 131 Abarth de Vudafieri, uma história acidental


Adartico Vudafieri e Fabio Penariol, com o Fiat 131 Abarth, no Rali Vinho Madeira em1980


Durante este tempo de quarentena forçada, encontro nas memórias do Facebook uma fotografia – ela própria no original, um clássico em papel fotográfico Agfa -, com um Fiat 131 Mirafiori Abarth Rally, que em 1981 de uma forma acidental, cruzou-se comigo, quando assistia, junto dos meus pais e amigos à XXII edição do Rali Vinho Madeira, tinha eu oito anos de idade. É incrível a forma, como aquele momento no troço de estrada no alto da serra, são arquivados na nossa memória, num misto de cheiros e cores: da borracha queimada dos pneus Pirelli P7 Corsa, do alcatrão quente de agosto, humedecido pelo Olio Fiat derramado e ao odor forte a eucalipto e a pinheiros mansos. Ao ruído da azáfama criada na tentativa de encontrar despojos da máquina transalpina que acabara de se despenhar, entre o verde das árvores e arbustos misturados no castanho da terra vulcânica madeirense.

Esta mesma história que acabara de ver a ocorrer, e que ao rever as fotos daquela aventura , com o amarelecer pelos dedos e o tempo ao folhear, coladas no meu álbum familiar, aos meus olhos de tenra idade – foi, uma aventura de dimensão equivalente, às que vira com o grande ídolo Jacques-Yves Cousteau – que religiosamente acompanhava na RTP -, mas passada em terra . E que aventura! Aquele “Calypso” de Turim, que vira passar a arfar, com o uivo emitido pela batuta da injecção Kugelfischer – como maestrina da Osquestra Lampredi – passou em velocidade impressionante, que mal me permitiu ver o enorme “N.º 1 “ na porta do campeão europeu de Ralis em título, jazia agora, ali, diante dos meus olhos, branco e inerte. Como as enormes baleias, jazem de encontro às praias nos documentários do explorador francês. A emoção me invadiu, com a adrenalina a correr como a benzina no 131 Abarth Rally. O relato pelo repórter da RDP-Madeira, ao que acontecera, ecoava no meu pequeno e fiel Rádio transístor AM Sanyo que me acompanhava nas viagens no Toyota Corolla do meu pai: Mamma Mia! As imagens, que agora parecem frames – como as dos filmes em Tecnicolor -, no socorro aos pilotos, efetuada pela ambulância vinda da Calheta oferecida pela Suécia, naqueles anos de crise económica no nosso país.

Uma estória que desperta o interesse aos petrolheads? Claro.
 
Mamma Mia! Diziam também os italianos, por ser impensável, de início, em especial aos tiffosi dos ralis, na segunda metade da década de 70, que aquele modelo Fiat 131 de berlina familiar pudesse atingir o patamar de campeão mundial de ralis. Mas com o trabalho de bastidores da Abarth, desde a primeira hora e financiada pelo Grupo Fiat, acabou por ser , o carrasco do mítico Lancia Stratos, conquistando 3 títulos mundiais em quatro anos.
 
Quando o apresentaram, no Outono de 1974, a Fiat tudo fez para que a segurança e a fiabilidade fossem a imagem do novo modelo familiar para a década de 70, que apelidaram de FIAT 131 Mirafiori ( pois a Fiat tinha inaugurado o primeiro sistema robotizado na sua produção, no histórico estabelecimento de Mirafiori). Equipados com motores 1.3 cc e 1.6 cc de 65 cv e 75 cv, com a tradicional caixa de quatro velocidades e equipado com travões de disco frontais. Compensava com espaço, luminosidade, conforto, climatização e proteção anti corrosão ao nível de modelos de maior valor comercial.
 
O projeto para a criar a versão Fiat 131 Rally nasce por volta de 1975, desenvolvida pelos técnicos da Abarth e pela Casa Bertone em simbiose, dirigidos pelo Eng. Nicola Tufarelli, responsável pela divisão da Fiat. Partindo da versão base do 131, aligeirando toda a estrutura, com a utilização de material em fibra de vidro e alumínio, e na colocação dos para-lamas alargados para alojar as famosas jantes Cromodora e Pneus Pirelli P7 Corsa 235/45 VR15 de 10” no eixo frontal e 11” nas rodas traseiras e na colocação dos apêndices aerodinâmicos. Utilizando nesta fase inicial, num pré-série, com o motor 1840 cc e 16 válvulas do 124 Abarth rally, que pretendia suceder, e com ele participam nos primeiros ralis em fins de 1975 na Itália. O kit de preparação custava tanto quanto um exemplar novo do 131 versão stradale!
 
Iniciando-se quase em simultâneo a produção em Mirafiori de 400 unidades para obter a homologação FIA de Grupo 4 – obtida a bem da verdade, no dia 1 de abril de 1976 – as quais são finalizadas como 131 Abarth Rally nas instalações da Bertone em Grugliasco, Turim. A versão definitiva surge em competição no início de 1976. Motor quatro cilindros em linha, de 16 válvulas (215 cv às 7000 rpm, mais tarde 225 às 7600 rpm), o bloco especial tipo 131 AR, entre outras especificações somente presentes na versão Corsa incluindo um tanque de combustível especial de 60 litros e atingindo os 220 km/h de velocidade máxima.
 
Sendo preparados e adequados a cada tipo de Rali que se propunham realizar. Como também, ao longo dos anos finais da década de 70 e início de 80, foram sendo melhorados pelos mesmos técnicos ligados ao projeto – em 1978 o mesmo motor debitava 230 cv – e, que pretendia, dentro do grupo Fiat, manter a invencibilidade no Mundial de Ralis com o novo 131 Abarth Rally. Vence a primeira prova do mundial, o rali dos 1000 lagos com o histórica duplas Markku Alen – Ilkka Kivimaki, a 26 de agosto, a mesma equipa ganha em 1977 e 1978 o nosso Rali de Portugal. No ano de 1979, a Fiat corta no financiamento reduzindo a participação, e só em 1980 volta em força e à ribalta, já com o reforço de Walter Rohrl – Christian Geistdorfer que vence o Rali de Portugal e, por fim, em 1981 volta a ser ganho pela dupla Markku Alen – Ilkka Kivimaki. Em geral, o 131 Abarth Rally , revela um impressionante palmarés , nas principais provas do circuito mundial e europeu na época.
 
Além das equipas de fábrica, o novo 131 Abarth é opção para a famosa Jolly Club, Fiat Ricambi, Parmalat entre outras equipas privadas em Itália, destaco também as equipas em França, apoiadas pela filial Fiat francesa, apoiando pilotos como a famosa Michèle Mouton e o Jean Claude Andruet. Mas também outros pilotos, ao volante dos 131 Rally, um pouco por toda a Europa e até em provas fora do velho continente.
 
De início, fora muito criticado pelos defensores do Lancia Stratos – campeão do Mundo em 1974, 75 e 76 – , que na sua opinião, a ele caberia a posição de favorito na aposta ao campeonato mundial, nessa segunda metade da década de 70 . Mas o tranquilo 131, numa época de tração integral nos Ralis, apresentou na sua versão rally, uma enorme fiabilidade a par de uma versatilidade que a todos desfez as dúvidas, com o atingir, por fim, do ponto mais alto do pódio: com a tripla conquista de Campeão do Mundo de Rally em 1977, 78 e 1980! Anos de ouro nos Ralis para marcas do Grupo Fiat.
 
Precisamente neste último ano, o vencedor e campeão europeu de ralis, foi o piloto italiano Adartico Vudafieri, que participou nas edições de 1980 e 1981 do Rali Vinho Madeira, a prova madeirense, que desde 1979 entrara no Campeonato Europeu de Ralis , atraindo à prova rainha insular de pilotos da primeira linha – a sua primeira edição foi em 1959, é anterior à edição inaugural do Rali de Portugal. No ano de 1980,em que se sagra campeão Europeu, Vudafieri faz equipa com o copiloto Fabio Penariol , e alinha com o número #2 de porta, numa edição que em letras garrafais nos jornais foi apelidado de : O “ Inferno no Basalto “ dado o calor intenso que se registou a par com o frenético duelo , levado até ao fim , com o outro piloto italiano Maurizio Verini, ao volante de uma joia milanesa: um Alfa Romeo “Alfetta”. O Vudafieri acaba por vencer esta edição do Rali Vinho Madeira.

Na XXII edição do Rali Vinho Madeira, realizada entre os dias 7 a 9 de agosto de 1981, Vudafieri regressa à ilha do Infante D. Henrique, mas desta vez navegado pelo Arnaldo Bernacchini, experiente copiloto de provas do Mundial, agora nesta prova do Coef. 2 do Campeonato Europeu de Ralis. Trouxe um outro Fiat 131 Abarth Rally, chassis #G26 de matrícula TO R19729, este Abarth com grande palmarés, pois foi utilizado em inúmeras provas europeias e do Mundial, desde 1977 até fins de 1980,pelo piloto francês Jean Claude Andruet, e com este mesmo automóvel realiza vários ralis, destaco a vitória no Rali Sanremo a 4 de Outubro de 1977, contando para o Mundial de Ralis – por coincidência feliz, também Andruet participou neste ano no rali madeirense com um Ferrari 308 GTB com o #2 de porta, seguido pelo Fiat 131 Abarth que tinha sido sua propriedade, e ao volante do Ferrari, com o qual tinha ganho no mesmo ano, a mítica prova Targa Florio em Itália. Mas foi vítima também da dureza da prova insular, ou de outros factores, numa desistência envolta em mistério.

Nessa saudosa edição da “festa do Rali” de 1981, a sua história, foi composta por vários pormenores, quase de argumento de um bom filme sobre automobilismo para uma matiné. Antes da partida, o favoritismo era direcionado aos dois potentes Ferrari 308 GTB conduzidos por Jean-Claude Andruet – especialista em ralis de asfalto e muito experiente – e Roberto Liviero, e aos dois Fiat 131 Abarth Rally de Adartico Vudafieri – campeão europeu de ralis em título –, vencedor da edição anterior, e o de Zanussi. E após as primeiras etapas existe a confirmação do favoritismo atribuído aos bólides de Modena, em especial a Andruet. Com Zanussi no seu 131 Abarth a desistir cedo, durante a segunda classificativa.
 
Aparentava ser vitória clara para o audaz piloto francês, ao início da 2ª etapa, com mais de dois minutos de diferença para Liviero e a oito minutos de Aly Kridel – Paul Dunkel em Ford Escort 1800 MkII, piloto luxemburguês pouco conhecido. Mas ocorre o abandono, por problemas de caixa de velocidades, do outro Ferrari 308 GTB de Liviero, ainda mais se afigurava a sua direcção aos louros de Andruet, caso a reviravolta madrasta, em que o francês é obrigado a parar o Ferrari 308GTB e a desistir, num dos episódios mais estranhos da história deste Rali.

Muito se falou, e ainda é assunto que é aflorado, pois a razão oficial do abandono foi uma suposta troca de bidões de combustível durante um reabastecimento, pelo staff da equipa vinda de França, e em vez de gasolina, foi atestado de mistura com água no depósito! Mas para muitos foi sabotagem? Acaso? Fica o mistério. Esclarecedora foi a vitória final do rali e inesperada do Ali Kridel, beneficiando de todas as circunstâncias, mas provando que para vencer, basta acima de tudo ser regular. De destacar a desistência nesta etapa do campeão Vudafieri, por despiste, na Ponta do Sol, na zona do muro branco, quando faziam a sua prova, na estrada empedrada entre os Canhas e o planalto do Paúl da Serra. E, precisamente no local, onde eu estava a assistir à prova.

Passados quase 39 anos, ao longo do tempo, os vários desenvolvimentos e contactos com pessoas de vários países que este mesmo episódio proporcionou e, que acabei por conhecer. Um deles é a feliz coincidência na edição do Rali Vinho Madeira de 2017, participou como copiloto o Giovanni Bernacchini, precisamente o filho do Copiloto Arnaldo Bernacchini de Vudafieri na edição de 1981, com o qual tive oportunidade e de uma forma simpática conversar, sobre este acidente sofrido pelo seu pai, em plena Avenida Arriaga, na cidade do Funchal, onde ocorre a partida de todas as edições do Rali. Confirmando que se recorda – ele na época da minha idade e acompanhava com a mãe o rali, e que achou fabuloso o relato que lhe fiz, sobre a minha experiência nesse dia.
 
Com o quem mantenho contacto regular até aos dias de hoje. Mais tarde, já em Itália, o próprio confirmou com o pai pormenores deste acidente. Arnaldo Bernacchini relata que lhe custou 6 costelas partidas após a queda por alguns metros do Fiat 131 Abarth Rally! E esclarece também sobre outro dos mitos sobre este Fiat 131, que após o acidente deixaram na ilha a carroçaria acidentada, retirando-lhe o motor e restante mecânica, para que fosse supostamente, depois para a sucata…. Outras versões, inflamadas talvez em gasolina com altas octanas de imaginação, referem ter sido enterrada na zona da freguesia de Santo António no Funchal. O seu fim em concreto desconheço.

Ao Giovanni, que achou imensa graça como o seu pai, impressionado, após eu revelar as pequenas peças que recolhidas após o acidente, em especial de uma bela jante Cromodora e o respetivo pneu original Pirelli P7 Corsa, o pneu de substituição que saltou na queda, com duas riscas brancas pintadas, para os diferenciar como era usual na época, do malogrado 131 Abarth.


Incrível que no mesmo ano de 1981, ao Markku Alén, na zona da Peninha, no Rali de Portugal, ocorre algo semelhante, num despiste no seu 131 Abarth Rally, partindo e perdendo todo o conjunto de uma roda frontal. Com uma jante cromodora e o mesmo tipo de pneu Pirelli. Anos mais tarde autografada pelo próprio, e que se encontra à venda na internet por mais de 18 mil libras, ou seja, mais de 21 mil euros! Provando a quase imortalidade destes Fiat 131 Abarth Rally, como aquele que vira a correr no distante 1981.

in Jornal dos Clássicos 
(2 de abril 2020)


O Alfista Lobo do Mar

O Alfa Romeo Giulietta Sprinte Veloce, na Volta à Ilha à Madeira, em 1962


A Cidade do Funchal, ao longo das décadas, tem sido um importante porto de escala para a navegação marítima – pela soberba localização geográfica da Ilha da Madeira, no Oceano Atlântico – dos navios transatlânticos das principais companhias europeias, na rota para os seus destinos – os portos africanos ou americanos. Entre eles, os navios da companhia “Cunard White Star Line” – a proprietária do infeliz Titanic.
Aportando e zarpando de uma Ilha paradisíaca e onde os seus passageiros passavam horas ou dias na cosmopolita cidade, que ainda mantinha a pacatez e o romantismo otimista do pós-guerra. Navios esses, que, desde as décadas de 40 e 50, foram auxiliados nas manobras de chegada e partida ao molhe do porto da “pontinha” por um dos seus pilotos da barra: Luís Cunha Teixeira – conhecido entre os madeirenses simplesmente por: O “piloto” Cunha.
Nasceu a 26 de março de 1918, na freguesia de São Pedro da capital madeirense.
Desde a adolescência, e tempo de estudante, praticou várias modalidades desportivas ligadas ao mar, moldando como na obra de Jack London o jovem “lobo do mar” num verdadeiro sportsman.

Mais tarde, ingressa na “Escola Naval” em Lisboa.
Nesta época, atravessa o Atlântico por várias vezes a bordo do Navio “Amarante” em plena II Guerra Mundial.
Após, regressa à ilha, onde consegue colocação como “piloto da barra” no porto do Funchal.
Divide os seus tempos livres entre a paixão pelas atividades náuticas e pelo desporto motorizado, nas tertúlias com os amigos pelos bares da cidade capital insular e as provas com os automóveis.

Devoto sportinguista e um dos fundadores do “Clube 100 à Hora” regional, que organiza várias provas de Circuito, Perícia, Ralis e Rampas...
Leva a sua paixão à prática em 1953, quando participa, pela primeira vez, num Rali regional com um Opel Olímpia e, nos anos seguintes, em provas locais.

Em 1959, toma parte na “I Volta à Ilha da Madeira em Automóvel” – prova organizada pelo “Club Sports Madeira”, integrada nas comemorações dos 50 anos da sua fundação – com um Ford Taunus 17m.
Provando, uma vez mais, que era um bom volante, reconhecido nos meandros do entusiasmo madeirense, pela competição automóvel.
Nesta prova, participa uma verdadeira armada Alfa Romeo, vinda do continente com o apoio do ACP. Constituída pelos principais pilotos que na época competiam ao volante dos pequenos e ágeis Alfa Romeo Giulietta, nos modelos Berlina T.i. ou nos elegantes Sprint, Spider ou Sprint Veloce.
Acelerando e espalhando o perfume italiano pelas sinuosas e belas estradas de basalto insular, contornando o rendilhado das localidades – como no bordado madeirense com o verde da Laurissilva emoldurado pelo azul do oceano.

As Giulietta a todos cativa pela sua performance – tendo em conta os 1300cc do seu motor em alumínio de dupla árvore-de-cames – conferindo-lhe ligeireza - cronometrando melhores tempos em relação aos outros automóveis – mesmo de maior cilindrada – além de uma suspensão muito evoluída e eficaz ao seu tempo.

Provavelmente influenciado pelos alfisti continentais, o “piloto” Cunha encomenda um Alfa Romeo Giulietta T.i. – a versão berlina de 4 portas – comprada nova na empresa MOCAR em Lisboa, matriculada como “HE-97-23” e mais tarde matriculada “MD-38-13” no Funchal. Compra-o através do concessionário “Fernando Ornelas Cunha, Lda” – propriedade da família de um outro notável piloto ilhéu: O Zeca Cunha, com quem muitas vezes é confundido – representante da “General Motors” no Funchal e que, passa a representar a Alfa Romeo na Madeira – segundo o seu filho António Teixeira, que em 2010 honrou-me com o acesso ao arquivo fotográfico de seu pai. O “piloto” Cunha ganha o estatuto – na minha opinião – do maior alfista madeirense da década de 60.

Numa ilha onde os automóveis eram na sua maioria de origem alemã, francesa e inglesa - pela grande influência dos britânicos residentes, no comércio regional – o facto de competir com o Alfa Romeo Giulietta T.I. marca a diferença, numa altura em que o modelo regista enorme sucesso na competição por toda a Europa.

A Giulietta é descarregada a escassos três dias da prova - a “II volta à Ilha” em 1960 (#19) - efetua a rodagem durante os reconhecimentos e, no treino para as provas de perícia na avenida do Mar, ladeada com imenso público - termina em 40.º – entre 71 equipas.
Ao longo do tempo, participa em várias provas de rampa; rally; critério ou de perícia pela ilha e, em 1961 (#18), participa na “III Volta à Ilha” onde termina em 27.º – entre 46 equipas ...
No fim desse mesmo ano, os paquetes transatlânticos faziam ecoar os seus apitos, entre o fogo de artifício na baía do Funchal– como é tradição – e, entre flutes de champanhe; sorrisos e votos de um próspero ano novo de 1962, o " piloto " Cunha brindava ao seu novo Alfa Romeo Giulietta Sprint Veloce...

Considerada como a maior manifestação desportiva insular, a "Volta à Ilha da Madeira em automóvel" - prova rainha do “Club Sports Madeira” - teve a sua primeira edição em 1959, oito anos antes da primeira edição do “Rali de Portugal “. E, ano após ano, ganha o estatuto de verdadeiro cartaz turístico - justificando que, em 1962, o paquete “Príncipe Perfeito” seja fretado para transportar 1.004 passageiros com destino ao Funchal, para assistir à prova: O "Cruzeiro das Orquídeas”. Transportando os excursionistas – que demonstraram muito interesse, vindos do continente e desde início esgotando as vagas disponíveis.
Outros, vindos das vizinhas Ilhas Canárias – mais de uma dezena de pilotos espanhóis – de avião até à Ilha do Porto Santo e, transportados depois em dois iates para o Funchal – para participar na “IV Volta”, após a chegada dos seus coches por barco cargueiro.

O interesse pela prova por parte dos madeirenses – desde sempre grandes entusiastas do automobilismo - e pelos forasteiros era crescente, ocorrendo um interessante intercâmbio entre os dois arquipélagos atlânticos, além da contínua participação dos pilotos vindos de Lisboa desde a primeira edição da prova no último ano da década de 50.
Bem impressionado com as qualidades dinâmicas do seu Alfa Romeo Giulietta Ti – bem preparada para competir, por mecânicos locais e, como era hábito na época, substituiu a embraiagem original por uma do modelo Sprint Veloce, tornando-a mais resistente na dura solicitação às mudanças de caixa, na condução pelas difíceis estradas insulares – nas diferentes provas onde participou – entre 1960-61. Todavia, sempre encontrou a maior dificuldade na afinação do carburador da Giulietta Ti, tendo chegado ao ponto de a enviar às instalações da empresa “MOCAR”, em Lisboa, para proceder a uma afinação capaz.

O alfista “piloto” Cunha compra, para a época de 1962, um novo Alfa Romeo Giulietta Sprint Veloce (Em 2021, quase a voltar à estrada após restauro) – registado como "CE-97-06" – o modelo coupé e mais potente que a sua anterior Giulietta Ti – de cor "Bianco Gardenia" – e, para o efeito entrega a Giulietta Ti no agente Alfa Romeo “Fernando Ornelas Cunha” na avenida do Mar, na cidade do Funchal. A Giulietta Ti passa a propriedade do Zeca Cunha, que em 1963 participa no "II Rallye Internacional de Gran Canária" integrado num grupo de pilotos madeirenses. Com a nova Giulietta Sprint Veloce participa nas provas regionais do “Clube 100 à Hora” e nas IV e VI “Volta à Ilha” de 1962 (# 16) e 1964 (#12).

O “piloto” Cunha foi, acima de tudo, o perfeito exemplo do entusiasta do automobilismo do seu tempo, utilizando o carro do “dia-a-dia” para no fim de semana participar nas provas e regressar a casa no mesmo. O típico “Chefe de família” que corre com o carro da família ao Domingo... Optando por um modelo de maior sucesso neste tipo de provas por toda a Europa. Vencendo ao longo da sua carreira vários prémios, referentes a provas complementares, de perícias ou de arranque e travagem. Os seus Alfa Romeo Giulietta Ti e Sprint Veloce ficaram na retina de quem assistia, pela sua regular participação nas provas durante a década de sessenta na Ilha. A extrema dureza das estradas madeirenses de então, nunca se mostrou complacente com as suspensões levadas ao limite, testando a sua capacidade de resistência.
Luís Cunha Teixeira foi o maior alfista madeirense da década de sessenta e, cinquenta anos depois, o seu filho António testemunha que ser alfista é quase genético, constituindo quiçá, o seu maior legado. Porque os Alfa Romeo são apaixonantes em todas as décadas!

in JM
(janeiro/fevereiro 2021 - 3 crónicas)



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